segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

EM BUSCA DE UM CERTO TOM ESCARLATE

“Morrer deve ser tão frio
Quanto na hora do parto”
Gilberto Gil: Aqui e Agora, in Refavela


Ainda hoje é possível vê-lo, em noites de lua cheia, com seu corpo jovem, macérrimo e naturalmente ágil, escalando a ponte metálica em perseguição, supõe-se, ao B. B. King — é perfeitamente audível Lucille executando The Other Night Blues. No princípio, socorriam-lhe bombeiros, policiais, pastores, padres... Mas simplesmente esvaía-se na escuridão. Com o tempo, deixaram-no em paz com B. B. King e Lucille.
Os amigos atribuem a sua desventura, como tem sido vulgar, a uma mulher: Carmen, colombiana e artesã, com quem seguiu rumo ao sul, queimando cannabis sativa e fazendo artes. Eu, aliás, encontrei-o em Brasília, no Moinho, e dele comprei uma xilogravura, que, ainda hoje, moldura minha sala. Aquele menino, outrora alegre, dinâmico, era triste, apático. Já não se lembrava de ninguém. Muito menos da cidade natal.
Tempos depois, soube do seu regresso. Disseram-me que estava abatido, irreconhecível. Devorava telas, que um mercador lhe dava, em busca de um certo tom escarlate. Buscou-a ao limite, incisando o pulso, encerrando a vida como uma quarta-feira de cinzas finda o carnaval por estas bandas.

sábado, 13 de dezembro de 2008

RE-SERTÃO

A viagem se fazia noites e dias.

- “Esta noite nunca mais”, balbuciou Serafim Vitalino.

- Ora, homem deixa de remorsos, disse Dora.

- Para lá de Currais de Pedra, apegados à Paraibuna.

- Bem pensado, é hora de chegar, engoliu o riso.

A distância parecia ter espelhos, a memória. Serafim Vitalino ouvia um assovio, melodia do luar do sertão na noite escura.

Escaramuças na caatinga, os cabras do Coronel José Pereira vingando a marca, o ultraje no retrato do pai, nos destroços da casa de fazenda.

“Meu pai, ultraje vingado”, falou o coronel por trás de anos

- Dona Maria e o seu ancestral paraibano, insinuou Dora.

- Deixa estar, memória.

A caatinga, o cangaço e os caminhos do sertão se abriam, mascaravam silêncio e travessia.

Dora ergue-se de seu silencio como se sorvesse irresoluto segredo. As marcas, o sangue, a travessia.

Serafim fluía em palavras que pareciam sair de anos.

- Durma, Serafim, disse Dora, ninando o seu sono. Homem barbado e feito.

Dora se deixava cair no sono, à deriva das horas e das lembranças.

- A caminho de Paraíbuna, prolatou a voz do pai.

- Seu Beno, homem de capricho. Dora parecia ler segredos da família.

- Escaramuças na caatinga, todo cuidado é pouco, meu filho.

- A caminho de Paraíbuna ouvia-se o clamor de olhos estios, anos sem conta.

Como se os dias parissem a memória. Estrada, a cidade e a pouca ruas. Casas de portas e janelas deslizando diante dos olhos telúricos, ávidos, curtidos de estradas e espera.

Serafim Vitalino e Dora dialogavam, às vezes silêncio, outra vezes poucas palavras. O tempo se entrelaçava às vidas e sinas na esteira de anos e sertões.

- É hora de chegar, murmurou Serafim Vitalino, os olhos miravam a tarde caindo.

- É hora, Dora deixou o murmúrio insolente, que parecia vir da avó, e o silencio rondava a noite.

Paraibuna uma miragem se escondia no cansaço. Serafim Vitalino colhia o ânimo nas falas, nas lembranças. A casa de fazenda, o curral, vaqueiros.

- Campeadores de sonhos dissimularam Dora.

- Campeadores de lembranças, idas e vindas do coronel à capital.

- Afrontas pondo fogo nas casas de inimigos.

Serafim Vitalino esperançava Paraibuna na memória, o sertão fujento, o olhar ávido e seco como o couro nos móveis esquecidos, flagelo, travessia.

De repente a madrugada e Paraibuna aos seus pés.

- Hora de chegar, Dora.

- Cavalgaremos nossas lembranças, Serafim.

- “Esta noite nunca mais”, ouvi de meu pai na rede de tucum , no alpendre. Estava cansado de campear lembranças.

Ao sol do dia a Paraibuna, a fazenda, o moinho, cenas perdidas no tempo. Pedaços de sertão, morros, caatingas se fundiam no horizonte. Agora que dúvidas tinham dessa paisagem que se exauria com rugir do tempo.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

PAR E ÍMPARES

João amava Teresa. Teresa amava Raimundo. Raimundo amava Maria. Maria amava Joaquim. Joaquim amava Lili. Lili amava J. Pinto Fernandes.
J. Pinto Fernandes amava J. Pinto Fernandes.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

O ACIDENTE

No velho três em um, Jean-Luc-Ponty e seus acordes alucinantes. A música o conduzia para bem longe. Sobre a mesa de centro, a taça com o cabernet sauvignon, de que ela não gostara porque o achou muito encorpado. Preferia ser irrigada com um Porto, costumava dizer. Lembrou de como ela, entre um gole e outro, distraída, brincava com o rubro brilhante a bailar dentro da taça, as bolhas, uma a uma, pipocando silenciosamente. O jogo era não deixar desbordar, no máximo permitir que a onda subisse até a borda, caminho de volta em seguida. Com os olhos, ele acompanhava aqueles movimentos, como se deslizasse de um lado a outro, sobre uma pista de skate.

Ponty e seu violino continuavam com a mesma sonoridade, agora na quarta faixa do lado a do vinil.

Estendida sobre a cama, não tinha mais pulsação. Foi até ao laptop, o vinho junto, e começou a dedilhar alguma coisa. O teclado lhe pareceu vazio. Olhou para a taça, o vinho imóvel no fundo, tinha dificuldade de respirar, um pântano de águas turvas. Ainda assim, tomou um gole, o palato reagiu, como se tivesse sido submetido a constantes oscilações de temperatura. Uma gota resvalou para o lado externo da taça, escorregou lentamente, como uma lágrima, por entre os dedos trêmulos.

Ele bem que a avisara, era perigoso, não ia acabar bem. Estavam passando dos limites da razoabilidade. Aquelas experiências bizarras não eram mais simples fantasias. Ela insistiu, não se preocupasse, assumiria o controle, definiria o momento certo de interromper. A gravata era de seda italiana, de fios trançados, adquirida no Freeshop, juntamente com um Jack Daniel. Já a tinha usado para vendá-la, atá-la, chicoteá-la, puxá-la pelo pescoço em sua direção, prendê-la nas grades da cabeceira cama, até aí tudo bem. Quando vendada era divertido (e excitante) estimular sua imaginação. Nem sempre ela acertava com o que, como e onde se daria o desembarque, a invasão, sobretudo quando era conjugada e pela retaguarda. O importante é que eu estou gostando, dizia ela. Além disso, sempre gostei de uma dose dupla, qualquer dia eu quero tripla, pode fazer? Mas dessa vez foi pura loucura. Aperta mais e penetra, tudo ao mesmo tempo, bem fundo, lá na alma. Pareceu-lhe que quanto mais apertava, mais ela sentia prazer e isso também o excitava. Vou parar! Não! A jugular, vai estourar, isso é loucura. É não! Continua, uma delícia, leu pelos movimentos dos lábios, o som já era ininteligível; dentro dos olhos, constelações. Os reflexos comprometidos, afinal foram três garrafas. Tudo muito rápido. Somente parou quando ouviu o grito surdo e curto, seguido de um leve sopro que balançou os pelos do nariz, os olhos calcificados, a língua presa entre os dentes. Que merda, falou para si mesmo.

Ninguém acreditaria na minha versão.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

GENÉSICO

Caudaloso rio fluía das entrepernas, límpido e quente. Quando a nau, tardia, invadiu o porto, o rio enrubesceu-se, e, depois de sons ininteligíveis, o vermelho, em correnteza já tênue, viu-se com bolsões viscosos e embranquecidos.

O capitão, finda a invasão, exausto, mas sentindo-se Deus, imaginou, equivocadamente, ter feito da cidadela uma mulher.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

MEU BOM DOUTOR,

me-diz o Polidoro, de Zuza um dos netos, que o senhor não me-alue, que desatina meu contar, em pessoa minha veneranda descrê, mas mentiroso saiba eu não sou, o citadino respeite o sertanejo decano aqui, embrenhado nessas lonjuras desde a invenção do mundo. Ah, bem, nesse conforme fica mais bom, moço, por isso relevo, mas tento tome que Mão Sinistra domada ainda agora segue pela outra, a Destra, e se-sorria não em mangaria e ao velho aqui repita não isso nunca mais ao senhor peço, até encareço. Bom, assim é mais direito, nesse molde tudo entra nos corretos, nos estreitos, nos estribos, conselho entretanto dou jamais galhofe de novo o moço de matuto de cabelos de lã, que doutor de cidade ignora o estrupício de Esquerda Mão de homem quando da Direita se liberta e, desdominada, o avesso de Deus fica. Certo, já disse que adesculpo, vosmecê solicita reconsideração e eu defiro o pleito, porém não nunca bula mais não com o Demo, que Destino é quando menos se-espera o futuro invade o hoje da gente, então não desatine outra vez não pois quem no final das contas o moço que nem barba tem pensa que é pra desarrazoar estórias de tempos de antanho, do Avô do Avô do Avô? Pois não, pois sim, mas veja o sinhozinho que esse mundo é tudo muito misturado, o Bem no Mal, o Mal no Bem, entonce perscrute com o corpo, oiça com os olhos, olhe com os ouvidos, sinta com o pensar que hora há a de falar e a de calar, que tempo há o de plantar e o de colher, que dia há o de acordar e o de dormir, por isso se-eduque, se-atine, se-alue, conta se-dê que coelho tem orelha grande é pra não virar cenoura mais ligeiro, que cobra só se-achamega com outra de longe em longe por causa de que se se-enroscarem demorado de mais aves há, essas de rapina, bem aí no céu em espreita, e camaleão muda a cor pra despiste da sempre tocaiosa morte, não sabe disso não, o senhor? Ora, então se-assabedoreie mais, que se viver já por si perigoso é para que tornar mais arriscado o que periclitado, por desnaturada natureza, é? Claro, filho, de nada, se bem concluo adveio de extrema mocidade a imprudência essa a sua, mas mais se-cuide que na vida a morte pode ser besta de mais, como a do compadre Ciprião, por desvalia da mulher do pacato Mineu Medonho, que em revide de honra manchada lhe-retalhou como a um porco. Que, por estas bandas, nestes distantes, ainda inteiriça é a Lei e os artigos dela vigem todos, mas doutor promotor vossa mão em paz estendida com gosto aperto e abraço de boas-vindas lhe-dou a nossa antiga Catolé das Matracas, aconchego e auguro boas-cheganças, mas beber olhe, doutor, não beba assim, pelo menos não igual ao juiz Liminha, homem bom porém do Frege da Nhá Preta contumaz se-pode dizer ficou desde a morte da mulher, na Capital, de doença tão feia que nome nem dizer se-deve a gente, que seguro morreu foi de velho, viu, doutor promotor agora aqui chegado e sem nem pêlo nas faces, ainda.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

ELA, O MENINO E AS AVENTURAS DE TARZAN

Dedico essa narrativa nada semiótica aos contistas Airton Sampaio, Bezerra JP e M. de Moura Filho; aos poetas F. Wilson e Emerson Araújo.

Ali, no cruzamento da Paissandu com a João Cabral, Violeta, a espanhola, que se perdeu cedo na vida, era a maior atração. Conta-se que o próprio pai cuidou de deixá-la na porta do bordel somente com a roupa do corpo e sangrando. Tinha os lábios carnudos e olhos de Capitu. Diariamente, ao entardecer, insinuava-se sobre o parapeito da janela, à mostra os seios fartos e ainda duros. Especialidade: garotos imberbes e sequiosos. Fama: um bezerro nas entranhas.
Na outra esquina, um bar. Ali, toda manhã, um menino e uma rotina: abrir o estabelecimento e remover os resíduos da noite: tampinhas de garrafa, tocos de cigarro, estilhaços de vidro, algumas desilusões... Feita a faxina, era só aguardar o pai, por volta do meio-dia. Enquanto isso, a distração: ouvir discos de Jovem Guarda e ler revistas em quadrinhos.
Certo dia, sentado por detrás de uma pequena mesa, lia as aventuras de Tarzan, o Rei da Selva. À frente, sobre a mesinha, uma montanha de vinis, dois pacotes lacrados de cigarro Continental com filtro, uma carteira aberta para venda a retalho e um maço de fósforos Fiat Lux.
Ligou a radiola, colocou o braço na segunda faixa do lado b e sobre ele equilibrou uma caixinha de fósforo. Aumentou o volume e deu passagem a Evaldo Braga, que explodia os pulmões.
De repente, antes que Tarzan lançasse a lança certeira sobre o peito do leopardo, um cheiro forte de Água de Colônia e desodorante Mistral anunciou a chegada de Violeta, lépida e faceira. Sobre os lábios carnudos, uma camada de batom vermelho carmim, e nas unhas o esmalte, no mesmo tom, contrastava com o encardido na ponta dos dedos da mão direita.
Lentamente, ela pousou os braços nus sobre a mesa, o que deixou agitado o coração do menino. Aqueles peitos grandes, a um palmo do nariz, o fizeram perder a respiração. Tomou-lhe o Almanaque nº 54 do Homem-Macaco, recuou dois passos, levantou o vestido com uma das mãos, deixando-o à altura do umbiguinho; com a outra, enfiou a revista dentro da calcinha, acomodando-a entre as pernas. Por alguns instantes, flexionou a musculatura dos quadris e movimentou-se rapidamente para frente e para trás, para frente e para trás, tempo necessário para ele perceber que Tarzan, estranhamente, enquanto sumia de seu campo de visão, não demonstrava muito esforço em escapar do bote que, manhosa, lhe preparava a aranha peçonhenta.
Boquiaberto com a cena, ficou a imaginar que golpe iria o herói aplicar para vencer mais aquela batalha. Não obteve a resposta. É que ela, de supetão, interrompeu a coreografia, avançou os dois passos que antes recuara e soltou a barra do vestido, que ficou rente com a covinha dos joelhos. Ele, aflito, não parava de pensar no herói embrenhado no coração daquela selva cheia de armadilhas. O que fazer? Desvencilhar-se das teias da tarântula e se refugiar ao pé do vestíbulo da gruta seria a melhor saída, pensou ele, como que querendo adivinhar a próxima seqüência da trama. E ela? Precipitou-se sobre o maço aberto de cigarro, de onde retirou um. Sem pressa, fitou-o de forma desafiadora, com os olhos oblíquos e esbraseados, então se aproximou um pouco mais, agachou-se, envolveu firmemente o cigarro entre os dedos e o acendeu e o colocou suave entre os lábios e, lembrando Gilda, abocanhando-o, deu uma longa tragada. Subitamente, deixando a marca do batom no filtro, afastou da boca o cigarro, sem descuidar de manter, envolvendo-o novamente entre os dedos da mão, acesa a brasa tremulante. Foi quando, com a mesma boca generosa, deu-lhe um beijo tórrido.
Não esboçou ele qualquer reação. O hálito quente, misto de cerveja da noite passada e cigarro, incendiou-lhe a boca e o corpo. Aproveitando-se daquele estado de aparente letargia, ela cobriu-lhe o rosto com bafoeiradas de fumaça e, bem de perto, fazendo beiço, disse:

--- Não demora muito, é só crescer mais um pouco e eu quebro esse cabresto!

E assim, tão rápida como chegou, Violeta saiu, mexendo as cadeiras, ao som de Sorria, meu bem. Ao cruzar a porta, olhou para trás e, mais uma vez provocante, o gesto obsceno antecipou o que pretendia fazer. E antes de descer a calçada e atravessar a rua, sacou de dentro da calcinha o Almanaque nº 54 e o arremessou um Tarzan amarrotado e quase sem fôlego. Imóvel, ele. Mas quando percebeu que, apesar de tudo, o Rei das Selvas estava livre de qualquer perigo, molhou os lábios, recusando-se, contudo, a engolir a saliva. Queria apreciar por mais algum tempo o sabor agridoce do beijo, a rótula daquele joelho, o umbiguinho redondo, a marca da vacina na altura do ombro esquerdo, a essência saturada do desodorante vagabundo, o olhar de pidona... Em transe, nem percebeu que o disco parou de rodar e o braço automático da radiola retornara à posição de descanso. Tentou retomar a leitura a partir da página 69, mas não conseguia ler o que estava escrito nos balões nem acompanhar os passos de Tarzan, que agora saía em busca da trilha para a Cidade Perdida, em companhia de um guerreiro zulu.
Antes, haveria de localizar o cemitério dos elefantes e decifrar o enigma dos pigmeus das montanhas, o que lhe daria a imunidade necessária para vencer a etapa seguinte do desafio: cruzar o desfiladeiro da morte. Mas o pior estava por vir. Ao final do desfiladeiro, Tarzan e seu guia deparariam o rio das cobras, de passagem obrigatória, sem saber que na outra margem um grupo de selvagens africanos armados de arcos e flechas, estas venenosas, o espreitava. Mal chegaram em terra, os primitivos, rufando tambores e entoando cantos de guerra, avançaram, o feiticeiro à frente, em direção do Lorde de Greystoke.
Nesse momento, o menino despertou aos gritos do Rei dos Macacos, que esmurrava o peito e bradava, em tom de advertência: Krig-ha, bandolo! .


quarta-feira, 1 de outubro de 2008

A ÚLTIMA CEIA

Ao contista Airton Sampaio


A mulher, que há uma semana nem lhe atendia os telefonemas, agora lhe acenava com o que, com freqüência, negara. Redimir-se-ia porém, hoje, do batom na cueca.
Às escuras, a casa. Qual a surpresa? A mulher, na cama, nuinha, ou numa lingerie provocante? “Amor?”, sussurrou. “Cadê você?” O quarto: porta entreaberta. A cortina penumbrava mais ainda o ambiente, impedindo o fulgor lunar daquela noite. Vulto da mulher na cama, deitada, as pernas semi-abertas, os braços erguidos, chamando-o.
Mal se desfez de toda a roupa atirou-se sobre a mulher, e o abajur repentinamente aceso revelou E., A., J. e M. que, nuas e em uníssono, gritaram “Surpresa!”, e se arremessaram sobre ele. “O que é isso?”, balbuciou. A mulher disse que o amava demais e que, entre procurar outra na rua, que não conhecia, preferia que ele se satisfizesse com ela e as amigas. Porque achou que o testavam, repeliu os toques. Mas, enquanto a mulher, A, J. e M. o subjugavam, E. imprimiu gestos audaciosos, com mãos e boca. Relaxou...
Sem limites — qualquer um! —, transou com a mulher, E., A. e J. Com a última, sabia, não resistiria ao gozo, inteiro que estava, seu corpo chocando-se com as nádegas da mulher. Gritou “Vou gozar”, e antes que M. anunciasse por completo o ápice, o estampido, e a última imagem vista, fixada na cabeceira da cama, um fragmento de seu cérebro.
Depois, apenas o corpo arremessado sobre M.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

ANTES DA HÓSTIA

--- Padre, sou Benedita.
--- Que a atormenta, Benedita?
--- Me masturbo, todo santo dia, sob o chuveiro.
--- Ora, Benedita, justiça faça a seu nome e, a partir de agora, de tocar impuramente assim seu corpo deixe.
--- Padre, eu...
--- ?
--- Não gosto de homem, padre.
--- De homem você não gosta como mulher?
--- Não é meu querer, padre, eu juro, mas gosto mesmo é da Irana.
--- Filha, isso à boa ordem das coisas atenta.
--- Mas, padre, desde quando me dei por mim, eu já era assim.
--- Então, Benedita, de volta aos trilhos o descarrilado trem, o seu, reponha.
--- Não é, padre, uma opção minha não, isso.
--- Mas decidir não mais em pecado permanecer você pode, que o livre-arbítrio, para isso, você tem.
--- Mas, padre, eu...
--- Contra Forças Adversas que nem essas, moça, lute.
--- Tenho lutado, padre, mas, como uma alcoólatra, recaio.
--- Persevere.
--- Um Caos, padre, a minha vida.
--- Do Caos vem a Ordem, filha.
--- Por que não posso mesmo ser como sou, padre?
--- Porque é pecado, Benedita, mulher gostar de mulher e homem gostar de homem são perversões, elas ferem a lei de Deus.
--- Que faço, padre?
--- Agüente firme, filha, como eu.
--- Como o senhor?
--- Maneira de dizer...
--- Nem me masturbar posso, padre?
--- Poderia; o problema é que ninguém o consegue sem fantasia.
--- Então, padre, nem em imaginação eu e Irana...
--- Benedita, peca-se por Pensamentos, Atos e Omissões.
--- Ou seja, sempre.
--- Por isso sempre devemos fazer três coisas: rezar, rezar e rezar.
--- Rezar, padre?
--- Rezar, filha.
--- Padre, eu...
--- ?
--- Obrigada, padre.
--- De nada, filha. E nos trilhos o trem, descarrilado, reponha.
--- Quando volto, padre?
--- Cuidado, meu menino, cuidado, que não pode ser assim. Eu te aviso...

sábado, 13 de setembro de 2008

PARA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DE SHAKESPEARE

A moça de olhos negros e vivos
me disse quero um autógrafo
- me dê um papel
mas ela falou que não. "aqui mesmo",
ergui sua coxa de pêlos dourados
e no azul claro do short
pus a minha emoção.

Acima a lua quase cheia e metálica resvalava sua lembrança, Ofélia de onde saíste? De algum livro antigo ou de uma colagem de imagens que serpenteava na memória sutil mistério?
Ofélia branca e pálida quase lua cintilava fugaz à luz de vapor de mercúrio, deslizando para cá e para lá, cisne branco no lago azul da ópera e de meus olhos presos, Ofélia.
Ela servil a olhos senhores, Ofélia rara e vera cria, entre o silêncio de seus olhos e a música que fluía do bal, ela dócil eva antes da mordida tecia os guizos tua presa, meus olhos.
Como arranjar as palavras, as imagens, a ficção que fluíam de seu mistério?
As ruas se desfaziam na noite veloz e ela entre arisca e terna, os lábios prendendo palavras sumiam na minha boca, e na língua seus dentes, Ofélia, Ofélia, Ofélia na tua pele clara a minha bronzeada, e o milagre mestiço correndo nas veias. Entre a ânsia contida nos olhos e a canção de Fagner, ela vampi me mordia, e eu acariciava o seu silêncio ávido, imprevisivelmente Ofélia.
O rio misterioso, cão pestilento deslizava sobre colunas trêmulas e luminosas, trêmulas como suas mãos em minhas costas e a cada olhar acuado uma menina se revelava em gestos fugazes, mas sob o vestido amarelo tremiam, tremiam, ao ritmo dos passos, a alça teimava em desnudar-lhe os ombros, seus seios tremiam.
A cada esquina ruas iluminadas se abriam para o lúdico silêncio, out-door, neone luzes, e luzes e luzes, os olhos negros e piscos revelavam o desenrolar de um novelo interminável, seus olhos negros e piscos se embaraçavam em dúvidas, Ofélia.
Ela entre a queixa e o afago e meus lábios faziam festa nos cabelos ciganos que se desfaziam, o pescoço a trilha de seu segredo, Ofélia, Ofélia, Ofélia no róseo de teus lábios a fome da maçã encurtava caminhos como um blue antigo de Joplin, e diante de minha sede a doce tarântula acesa, pão e vinho, e nos banqueteávamos sonâmbulos.
Às vezes ela dizia que as palavras não batiam com os gestos, eram movediças, cheias de ciladas, mas sem as palavras as emoções não tinham a força que a sua sensibilidade reclamava, mas com um negaceio, ela fincava o pé na sua decisão, revelando a face ofídica de mulher.
Mas sobre nós o olhar azul da quimera estendia sua luminosidade invisível e imagens impertinentes batiam na tua porta Ofélia, Ofélia, Ofélia, e passos que passos seguíamos? A malha preta do vestido já não ocultava suas pernas e o hálito de seu corpo anunciava o paraíso oculto que enlouquecia, atraindo a avidez de meus lábios.
E o dadinho invisível girava, girava, girava amorosamente à luz de olhos esquecidos, a sorte na palma da mão, mas Ofélia intuía pedras se movendo no caminho e farpas fluíam de seus olhos, e do outro lado de seu silêncio eu insistia que viver não era apenas se guardar e não correr riscos. Ofélia nada dizia e imóvel omo um vegetal, eu a despertava com um beijo.
A Ofélia quase nada me guardava e no desbravar só luz da pérola intacta, nem regras e o dadinho girando, girando, girando à penumbra, dois copos, ela distraída raspava o rótulo da garrafa, e do lóbulo da orelha o azul-escarlate me atraía e me denunciava com as cores do enigma.
E repentinamente ralhos e sussuros inaudíveis pareciam tomar o seu pulso branco e ela tímida fixava o rio, que perdia o seu encanto, e leve como uma pluma, desvencilhou-se de meus braços e lentamente distanciava. Além o portão, ela dócil que branca e pálida, por instantes, fixou-se no brilho frio de meus olhos e apenas um vulto sumiu nos corredores sombrios.
A noite se estendia e sua esfinge crescia, crescia, crescia em mim como o bolero de Ravel, e além de seu enigma de criatura, a ansiedade roendo as horas, os lábios sussuravam Ofélia, Ofélia, Ofélia e la parecia surgir inteira nos out-doors que se multiplicavam na cidade.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

O CORVO

Não me lembro de quando tudo começou. Lembro-me que primeiro vieram os pardais, depois algumas graúnas, em bandos. Os sabiás, logo em seguida, não paravam de cantar. Por fim, pousou um falcão e ele era garboso, as asas tocando o chão, um olhar imponente, todos pareciam lhe render homenagens. Pouco a pouco, uns silenciosamente outros batendo as asas, foram se aninhando, o que até me divertia. No início ainda tentei afugentá-los, mais pela sujeira que deixavam do que pelo peso sobre minha caixa craniana. Não demorou e eu desisti, mesmo porque eram alegres e simpáticos, cada um com uma plumagem mais bonita do que outra, eu podia dizer que a vida até que estava colorida. E viviam em perfeita harmonia, assim concluía, àquela época. Vinham sempre no final da tarde, quase sempre em bandos e na manhã seguinte, em revoada, batiam suas asas, o destino eu ignoro, mas sempre estavam de volta ao entardecer, com o papo cheio, como se costuma dizer, até que um dia não voltaram mais. Algo os assustou e sei o motivo. Foi quando chegou o corvo, com seu canto de mau agouro e seu bico curto e afiado, sua veste negra como o breu da noite, nenhuma candura havia nele. Foi um duro golpe, justo no momento em que eu começava aprender o canto do sabiá eles se foram. Sinto saudade, ainda que tivesse, toda manhã, que aspergir os cabelos, antes de penteá-los, para remover sementes, restos de insetos e pequenos frutos deixados para trás.

O corvo, quando pousou, de imediato abriu uma clareira em volta com suas garras afiadas. Coincidentemente, meus cabelos começaram a cair. E não parava de grasnar, de forma tão sombria que assustava a coruja em frente. Aliás, minto, parava quando sentia fome, imagino. Aí então começava a bicar mais fortemente, que nem uma britadeira de asfalto. De tanto insistir, abriu-se um buraco no meu cérebro do tamanho de uma cratera lunar, embora aqueles açougueiros, que se autodenominam médicos, digam que, na verdade, a tal cratera foi conseqüência de uma queda acidental. Certo dia bicou tanto que levou meu lobo temporal e se alojou no lugar. Dali só saía à noitinha, quando todos em minha volta estavam dormindo, mas logo retornava com restos de vísceras em volta do bico, sempre ele. Foi a partir desse momento que me veio essa apatia que alterno com raros momentos de euforia, que é quando vejo paredes no lugar de portas e estas no lugar daquelas. Todas as pessoas segundos depois de vê-las me parecem estranhas. Essas mesmas pessoas, que se queixam ser da família, do que não me convenço, dizem não acreditar que na minha cabeça há esse demônio como inquilino, nessa altura já pensando no melhor meio de se reproduzir.

Insisto em dizer que não estou louco. E mais: neste momento o corvídeo está comendo o que me resta dos neurônios, agora em silêncio, que é pra não chamar atenção. E eu é que não tenho culpa se eles não conseguem sequer enxergar suas alas negras. Talvez no dia em que elas cobrirem meu corpo como um manto negro é que irão acreditar em mim, mas aí já terá sido tarde, eu creio. O corvo, impune, baterá asas.

sábado, 16 de agosto de 2008

O PLANO

Deu-lhe um safanão. Acordou-o.
“Quem é Gertrude?”, sussurrou visivelmente brava.
Respondeu, ainda aturdido pelo despertar ab-rupto, que Gertrude era uma personagem de um trabalho.
Ela olhou-o mais furiosa. Sim, introduziria, definitivamente, vidros moídos no cardápio.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

MOTEL 69

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quinta-feira, 24 de julho de 2008

HEPTAGRAMA

Foi o primeiro de uma linhagem de sete. A mãe, maldição nenhuma lhe lançou. A dedicada esposa, uma mulher resignada. Assim, cumprir a missão – que lhe veio naturalmente e pelas mãos de Príapo - não lhe pareceu uma tarefa hercúlea; antes, uma dádiva divina (perdoem a redundância) com a qual os eleitos, os justos e os bens aventurados, somente eles, são ungidos. Seduziu sete mulheres puras. Todas previamente irrigadas com vinho tinto. Nenhuma delas respondia pelo nome Maria. Sobre elas derramou as sete taças de sua graça. E a cada uma deu o nome de uma deusa grega, porque foi assim que elas se mostraram. Por isso, deu-lhes mais que a espada fremida, quando lhes penetrou a carne. Era um dedicado pescador, de almas femininas. Estudioso, também. Ninguém as compreendia melhor, sentenciava. Elas, mais que isso, intramuros, confirmavam o que já se sabia. Tinha o toque de Midas. Depois de sua passagem, cada uma delas alcançou a graça perseguida pela maioria das mulheres medianas, as verdadeiras altivas. Casaram-se. Um filho haveria de completar-lhes a felicidade. Gratas, se sentiram também no direito de chorar sua súbita morte, como se viúvas fossem, o que de fato eram. Foi quando se conheceram, se é que se pode dizer que se conheceram, pois palavra nenhuma foi pronunciada, olhar nenhum foi trocado, nenhuma cumplicidade testemunhada. Em todas - e as razões eram fundadas – o receio no coração de que se confirmasse uma suspeita. O mesmo olhar, a mesma abordagem, as mesmas palavras sussurradas em tons melodiosos, a mesma rendição e a alma (a dele) inquieta, sempre. Perfilaram-se uma a uma, ao lado da urna. Foi quando constataram que ele conservava na pele a mesma viçosidade. Nesse momento, assim revelam os mais velhos que testemunharam de perto e a quem não é dado a mentir, por pouco não claudicaram. A imagem das narinas obstruídas com chumaços de algodão trouxe-lhes, de volta, à realidade. Rezaram sete vezes o terço e incontáveis ave-marias. Após, circularam; umas beberam café, outras chá de camomila. Todas comeram sequilhos frescos. Misturaram-se, com aparente intimidade, entre amigos e familiares, com os quais conversaram amenidades e aproveitaram para satisfazer curiosidades. Depois, cumprimentaram, com profunda dor, a inconsolável viúva. Quando os olhos se cruzaram, não resistiram e do peito irrompeu o pranto. Havia algo de familiar. Tiveram a nítida impressão de que, em algum lugar, no passado, viveram idêntico momento. Recompostas, se prepararam para sair. Antes, tocando-lhe, com a ponta dos dedos, os lábios, que lhe pareceram ainda quentes, despediram-se.

Quando assinaram o livro de visitas, o fizeram com os nomes fictícios.

Foi o último acontecimento acerca do qual não existe divergência de testemunho. Sobre os que se sucederam, as versões são desencontradas. Dentre os vários relatos, narro abaixo o que me pareceu mais sustentável.

Ao saírem, cada uma seguiu um caminho diferente e as linhas imaginárias traçadas a partir do ponto inicial formaram um septagrama.

Aquela foi a primeira e única vez que se encontraram. Nunca mais se viram.

Ainda assim, numa combinação silenciosa, guardaram luto fechado por sete dias (quando se vestiram de preto) e mil e uma noites secretas (há quem diga que coincidiram com os dias), tempo em que as tarântulas - umas negras, outras quase ruivas - cresceram livres, para a perplexidade dos maridos.

Passada a clausura, numa noite em que a lua estava coberta de leite, todas foram simultaneamente fecundadas. Nessa mesma noite, os galos da madrugada emudeceram, os cães ganiram silenciosamente, os ponteiros dos relógios giraram no sentido contrário. Soube-se que no oriente os rios e os mares engoliram a terra. Decorridos sete meses, um raio fulgurante de mil anos-luz atravessou a abóbada celeste anunciando a aurora. Nesse exato instante, embora não saiba se é seguro afirmar, todas as estrelas de sete pontas reluziram no firmamento.

Sete dias após, os notários inscreveram em seus assentos o nascimento de sete varões. Todos registrados com um só nome, composto por sete letras e um enigma.


quarta-feira, 16 de julho de 2008

ATÉ QUE A MORTE OS SEPARE

Chegou em casa com um misto de So Pretty, da Cartier, e Z, de Ermenegildo Zegna. O timbre da voz, percebeu logo, não era o comum. Nem a pauta:
— Demorei porque encontrei a fulana.
As narinas vibraram silenciosas. O Z não era feminino. Tampouco fulana era uma desmiolada: nunca usaria um perfume masculino.
Quem lhe teria tocado com patchouli? A percepção, ainda que não sentisse aroma diverso da que usava, era de quem, se não o traíra, fodendo, estivera flertando. O pigarro, quando detestava cigarro, indicava a mentira, ou, no mínimo, o desconforto.
— Você agora usa Z?
— Tá louco?
Vagabunda, murmurou, tateando o caminho rumo ao quarto. Retrucou, em sussurro, filho da puta.
E foram dormir.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

LOVE STORY

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!, vistos, etc...

domingo, 8 de junho de 2008

CORDIAIS SAUDAÇÕES

Ela chegou aflita. Arriou alguns pacotes de compra sobre a poltrona. O olhar de relance na paisagem do poty no óleo na parede. Rosilene Donora parecia trazer na memória alguns parágrafos de um conto da codecri (trama construída com sutis ranços de relações provisórias), ela julgou. Rosilene Donora apaziguada da pressa, com o olhar retirou Glauco Dantas do microcomputador.
"Meu bem retire de mim este fardo", ela disse, num aconchego rápido de corpos, acomodando-se ao sofá.
Glauco Dantas encarou Donora como se infundisse na mulher palavras que queriam ser ditas por força de acalorada pesquisa.
"Meu bem, Xatetoçó xalá estin", diziam os gregos por trás das marcas do tempo.
"Não queria ouvir isso de você com esta mão aposta na minha perna", disse Donora, com riso oculto na voz.
"Não cultivo o belo difícil, Donora, mas a expressão brotava com a contenção que me foge agora, disse Glauco Dantas.
"Xatetoçó xalá estin, xalá me atraia, porém o aconchego agora..."
"Coisas belas difíceis são" ou fáceis assim também delas, insinuou Glauco.
"Vá lá, Xatetoçó xalá esti" ou as coisas simples e belas, Donora disse sem retirar o olhar do vídeo, e premindo-lhe na perna como se pretendesse mais que uma atenção.
"Meu bem, os gregos tinham dessas, e nós agora..."
"O corvo bem familiar dos gregos. Vamos agora?
"Agora não, gavião", Donora disse, arrancando dele um olhar de contenção.
"Xopác, corvo, xopác", gosto de ouvir estas palavras, parecem transmitir algum DNA de civilização.
Ele a retirou da televisão com um olhar. Era assim que os fios de palavras atravessavam a noite, como o vôo do corvo e o rugir de concretas metáforas na cama.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

BOLA AO CESTO

Antes de entrar, ajustou o nó da gravata de seda italiana de fios trançados, garantindo que a ponta ombreasse com o cinto de couro de jacaré. Repassou, ainda, um a um, os argumentos.

Não se iluda, disse, após a leitura. Uma armação de titânio acomodava um par de lentes de correção que, de tão grandes, ajudavam a esconder a murchidão da pele. Viu-se refletido, as mandíbulas mais alongadas, as mãos maiores que os braços. Uma gota de suor aumentava de tamanho à medida que descia lentamente pelas têmporas. Ali decidem ao sabor do vento, arrematou, com ar de enfado - o que lhe acentuou as rugas na testa seborrenta –, e demonstrando, ele próprio, sua descrença. Não se apiedou do olhar incrédulo em sua direção nem percebeu que àquela altura o corpo, sentado à frente, suava frio, manchando o colarinho da dudalina de fios de algodão egípcio, tom lilás. Tinha a alma congelada, o velho. Isso não o impediu de esboçar, com desdém, um sorriso maroto ao ver a mão desesperada que tentava inutilmente afrouxar o nó da gravata de seda italiana de fios trançados.

Lívido, saiu dali com uma tristeza inconsolável, o nó da gravata de seda italiana de fios trançados fora de ordem.

De volta ao escritório, pediu à secretária que cancelasse a agenda do dia.

Fechado no gabinete e já livre da gravata de seda italiana de fios trançados, pelo telefone falou com três interlocutores diferentes. Depois, pousou o olhar ainda pálido sobre a placa em mármore botticino e vidro temperado bronze, que reproduzia alguns trechos do Oração aos Moços. Um Old Parr ao alcance da mão, para desfibrar o desconsolo. Com a outra, pausadamente, mas com rigidez, dobrou as sete laudas esgrimidas no papel timbrado, A4, letra em Time New Roman, fonte 12, alguns itálicos. E ainda que lhe doesse no mais profundo do ser, seguiu amassando-as, embolando-as, destruindo-as, até que alcançaram a forma de uma bola de papel do tamanho de um maracujá de feira, grande e murcho. Continuou por alguns segundos, como se fizesse um exercício de fisioterapia. Em seguida, com as duas mãos, a esquerda como apoio, ergueu a bola de papel, que agora parecia de chumbo, ao mesmo tempo em que enchia o pulmão de ar, prendendo, ao final, a respiração. Segundos após, soltou-a e arremessou os fatos e o pedido à cesta, de lixo. Tiro certeiro, como nos bons tempos dos jogos universitários.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

DOBAL

Verões
Domingos
Tardes

Verões
Domingos de verão
Tardes de domingo de verão

Sejamos, agora, generosos.

O Poeta, que a vida inteira se nos doou, precisava descansar...

sexta-feira, 16 de maio de 2008

A HERANÇA DE CADA UM

Eles, aos berros, agrediam-se. Gérson, o caçula, sangrava já. A mãe, antes buscando apartar os filhos, agora retinha-se no sofá, mirando um ponto qualquer no céu, pela varanda, como se estivesse sozinha. Os dois, pensava mais uma vez, nunca se uniriam. Afinal, Lucídio, pai de Lucas, e Geraldo, pai de Gérson, foram inimigos até a morte.
A mãe levantou-se e dirigiu-se à varanda. Olhou o céu, e, como se o desprezasse, buscou a terra.
Os filhos, ainda hoje, agridem-se por qualquer bobagem. A mãe não esboça qualquer gesto para separá-los, presa à cadeira de rodas e ao passado. Ontem, porém, Lucídio visitou-a à noite, enquanto dormia, com a marca de corda no pescoço, prometendo retornar. As mãos tremeram e o rosto contraiu-se ao lembrar que ele a chamara de assassina.
Precisava encontrar um meio de afastar pelo menos o fantasma.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

VIAGEM EM TORNO DO SOL

a socorro santos

“Licença, moça...”
Toda, senhor.
“Este o ônibus circular?”
Sim, este.
“Ufa, que lua.”
Quente, mesmo.
“Demais, o calor.”
Sim, que sol.
“Um braseiro.”
Uma sauna.
“Ufa, arre.”
O calor.
“Bê-erre-o-bró, isso.”
Quente.
“Minha mão...”
Suada.
“O inferno, aqui.”
O sol.
“Tórrida, a cidade.”
Um forno.
“E que forno.”
Sua mão...
“Suada.”
O calor.
“O sol.”
Só sol, o céu.
“Demais, no céu, o sol.”
Que sol.
“Céu-sol, este.”
Vou descer.
“Tudo bem.”
Ótima conversa, senhor.
“Legal também, moça, a sua.”
Até.
“Até.”
Este o ônibus circular?
Sim, este.
Licença, moço...

quarta-feira, 23 de abril de 2008

LOBA

Ao derramar do dia, deixa escapar alguns grunhidos. É quando lambe o próprio ventre. À meia noite, meio esquiva e oculta, contorce-se à meia luz. É quando se aquece. Na madrugada insone uiva para a lua, num longo gemido... É quando se queima por dentro.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

O AMOR É POSSÍVEL

Ela mirou a Cyber-shot para o seu rosto uma, duas, três, quatro vezes, enquanto ele sorvia o açaí que lhe tinha sido servido. A cada foto, ela, sorridente, mostrava-lhe o feito. A contragosto, olhava-a. Findo o açaí, levantou-se, com ela seguindo-lhe à distância, contrariada.
Quando ela disse-lhe que a esperasse e ameaçou transformar comprar em verbo irregular, suprimindo as primeiras pessoas do singular e do plural, parou, abraçou-a, tentando entrelaçá-la, e beijou-a.

terça-feira, 8 de abril de 2008

CARNAVAL

Despediram-se no sábado gordo. No baile da terça, todos mascarados e com distorcedores de voz nas bochechas. No motel, acordou sozinho, a cama vazia ao lado.
Em casa, à noite, mãos dadas com a mulher em frente à retrospectiva da tv, não conseguia esquecer que o chip, o dela, logo depois do louco gozo simultâneo, falhara. Sabia-se, agora, um corno --- e isso lhe doía mais que a cabeça pesada que nem chumbo.

sábado, 29 de março de 2008

ARRAZOADO DE DEFESA

A tartaruga australiana do promotor enquadrou-o em vários tipos. Era caso de preventiva. Foi decretada. Ele, recolhido. Nem bem viu o sol nascer quadrado, sua advogada, decotada, debruçou-se sobre a mesa do juiz, perdido entre papéis e jogos de paciência. Com a lupa numa mão e a caneta noutra, fez-lhe ver que na letra da lei havia uma brecha.

Lisonjeado com as mesuras, o meritíssimo vomitou meia dúzia de latim antes do decreto final de soltura.