quinta-feira, 9 de outubro de 2008

ELA, O MENINO E AS AVENTURAS DE TARZAN

Dedico essa narrativa nada semiótica aos contistas Airton Sampaio, Bezerra JP e M. de Moura Filho; aos poetas F. Wilson e Emerson Araújo.

Ali, no cruzamento da Paissandu com a João Cabral, Violeta, a espanhola, que se perdeu cedo na vida, era a maior atração. Conta-se que o próprio pai cuidou de deixá-la na porta do bordel somente com a roupa do corpo e sangrando. Tinha os lábios carnudos e olhos de Capitu. Diariamente, ao entardecer, insinuava-se sobre o parapeito da janela, à mostra os seios fartos e ainda duros. Especialidade: garotos imberbes e sequiosos. Fama: um bezerro nas entranhas.
Na outra esquina, um bar. Ali, toda manhã, um menino e uma rotina: abrir o estabelecimento e remover os resíduos da noite: tampinhas de garrafa, tocos de cigarro, estilhaços de vidro, algumas desilusões... Feita a faxina, era só aguardar o pai, por volta do meio-dia. Enquanto isso, a distração: ouvir discos de Jovem Guarda e ler revistas em quadrinhos.
Certo dia, sentado por detrás de uma pequena mesa, lia as aventuras de Tarzan, o Rei da Selva. À frente, sobre a mesinha, uma montanha de vinis, dois pacotes lacrados de cigarro Continental com filtro, uma carteira aberta para venda a retalho e um maço de fósforos Fiat Lux.
Ligou a radiola, colocou o braço na segunda faixa do lado b e sobre ele equilibrou uma caixinha de fósforo. Aumentou o volume e deu passagem a Evaldo Braga, que explodia os pulmões.
De repente, antes que Tarzan lançasse a lança certeira sobre o peito do leopardo, um cheiro forte de Água de Colônia e desodorante Mistral anunciou a chegada de Violeta, lépida e faceira. Sobre os lábios carnudos, uma camada de batom vermelho carmim, e nas unhas o esmalte, no mesmo tom, contrastava com o encardido na ponta dos dedos da mão direita.
Lentamente, ela pousou os braços nus sobre a mesa, o que deixou agitado o coração do menino. Aqueles peitos grandes, a um palmo do nariz, o fizeram perder a respiração. Tomou-lhe o Almanaque nº 54 do Homem-Macaco, recuou dois passos, levantou o vestido com uma das mãos, deixando-o à altura do umbiguinho; com a outra, enfiou a revista dentro da calcinha, acomodando-a entre as pernas. Por alguns instantes, flexionou a musculatura dos quadris e movimentou-se rapidamente para frente e para trás, para frente e para trás, tempo necessário para ele perceber que Tarzan, estranhamente, enquanto sumia de seu campo de visão, não demonstrava muito esforço em escapar do bote que, manhosa, lhe preparava a aranha peçonhenta.
Boquiaberto com a cena, ficou a imaginar que golpe iria o herói aplicar para vencer mais aquela batalha. Não obteve a resposta. É que ela, de supetão, interrompeu a coreografia, avançou os dois passos que antes recuara e soltou a barra do vestido, que ficou rente com a covinha dos joelhos. Ele, aflito, não parava de pensar no herói embrenhado no coração daquela selva cheia de armadilhas. O que fazer? Desvencilhar-se das teias da tarântula e se refugiar ao pé do vestíbulo da gruta seria a melhor saída, pensou ele, como que querendo adivinhar a próxima seqüência da trama. E ela? Precipitou-se sobre o maço aberto de cigarro, de onde retirou um. Sem pressa, fitou-o de forma desafiadora, com os olhos oblíquos e esbraseados, então se aproximou um pouco mais, agachou-se, envolveu firmemente o cigarro entre os dedos e o acendeu e o colocou suave entre os lábios e, lembrando Gilda, abocanhando-o, deu uma longa tragada. Subitamente, deixando a marca do batom no filtro, afastou da boca o cigarro, sem descuidar de manter, envolvendo-o novamente entre os dedos da mão, acesa a brasa tremulante. Foi quando, com a mesma boca generosa, deu-lhe um beijo tórrido.
Não esboçou ele qualquer reação. O hálito quente, misto de cerveja da noite passada e cigarro, incendiou-lhe a boca e o corpo. Aproveitando-se daquele estado de aparente letargia, ela cobriu-lhe o rosto com bafoeiradas de fumaça e, bem de perto, fazendo beiço, disse:

--- Não demora muito, é só crescer mais um pouco e eu quebro esse cabresto!

E assim, tão rápida como chegou, Violeta saiu, mexendo as cadeiras, ao som de Sorria, meu bem. Ao cruzar a porta, olhou para trás e, mais uma vez provocante, o gesto obsceno antecipou o que pretendia fazer. E antes de descer a calçada e atravessar a rua, sacou de dentro da calcinha o Almanaque nº 54 e o arremessou um Tarzan amarrotado e quase sem fôlego. Imóvel, ele. Mas quando percebeu que, apesar de tudo, o Rei das Selvas estava livre de qualquer perigo, molhou os lábios, recusando-se, contudo, a engolir a saliva. Queria apreciar por mais algum tempo o sabor agridoce do beijo, a rótula daquele joelho, o umbiguinho redondo, a marca da vacina na altura do ombro esquerdo, a essência saturada do desodorante vagabundo, o olhar de pidona... Em transe, nem percebeu que o disco parou de rodar e o braço automático da radiola retornara à posição de descanso. Tentou retomar a leitura a partir da página 69, mas não conseguia ler o que estava escrito nos balões nem acompanhar os passos de Tarzan, que agora saía em busca da trilha para a Cidade Perdida, em companhia de um guerreiro zulu.
Antes, haveria de localizar o cemitério dos elefantes e decifrar o enigma dos pigmeus das montanhas, o que lhe daria a imunidade necessária para vencer a etapa seguinte do desafio: cruzar o desfiladeiro da morte. Mas o pior estava por vir. Ao final do desfiladeiro, Tarzan e seu guia deparariam o rio das cobras, de passagem obrigatória, sem saber que na outra margem um grupo de selvagens africanos armados de arcos e flechas, estas venenosas, o espreitava. Mal chegaram em terra, os primitivos, rufando tambores e entoando cantos de guerra, avançaram, o feiticeiro à frente, em direção do Lorde de Greystoke.
Nesse momento, o menino despertou aos gritos do Rei dos Macacos, que esmurrava o peito e bradava, em tom de advertência: Krig-ha, bandolo! .


4 comentários:

Airton Sampaio disse...

J.L, você prova, com este conto, que o conto extenso e o conto minimalista não são bons apenas porque sejam por si sós extensos ou minimalistas, mas porque, extensos ou minimalistas, são, antes de tudo, bons. Valeu!

EMERSON ARAÚJO disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
EMERSON ARAÚJO disse...

João, rapaz, você continua demonstrando fôlego dos melhores em contos longos dos melhores. Esta personagem singular dos bordéis de antigamente e de hoje, outros bordéis, mas bordéis, também, que aparece aqui me remete para a personagem Pombinha de o Cortiço. Zoomorfização crua e nua sob os auspícios de Tarzan que quer sua macaca predileta, opa, que quer apenas enfiar um grito de animal em qualquer entranha. Ah, obrigado pela deferência a este 007que está serviço do Tarântula.

Anônimo disse...

Sem comentários.... porque é simplesmente maravilhoso, o conto do início ao fim é espetacular...