domingo, 24 de junho de 2012

EU, DEUS,


dei-te, criatura, a imortalidade, e não a juventude eterna.
Repugnante diante do espelho.  Por mais que se esforce, não vê traço algum de quando jovem.  Aliás, nem mesmo as fotos lhe trazem lembranças de outrora, mesmo com a sua memória prodigiosa: sempre refletem sua imagem atual, embora se veja, por instante, como antes.  Lembra-se de poses, inclusive nuas, para Alberto Henschel.  Lembra-se até da partida de seu pai, na manhã de 12 de março de 1823, para Estanhado, acompanhando emissário do Capitão Luís Rodrigues Chaves, conduzindo carta ao João da Costa Alecrim, que, por conta do ali narrado, aderiu ao confronto, em Campo Maior, com as tropas portuguesas.
Pobre criatura, a quem dei a vida.  Os males e dores da velhice lhe acompanham.  Mas todos a vêm jovem e bonita.  As fotos que atribui ao Alberto Henschel, por exemplo, na mão de todos, não passam de instantâneos de polaroides. Uns 30 anos, se muito, lhe dão.
E, no entanto, para que lhe serve a imortalidade, se não preservada a juventude? O mundo à sua volta, irreal, não ameniza o seu sofrimento, mesmo que os sorrisos que lhe são dirigidos não retratem repulsa ou compaixão por seu corpo esquálido e vincado. 
Sou senhor do seu destino. Dei-te vida e a ilusão aos que te rodeiam. Um dia, quem sabe?, não te mato, embora tal desfecho seja improvável.

Para Bezerra JP



domingo, 17 de junho de 2012

ENTREVISTA


O Senhor tem um minuto pra dizer a razão pela qual quer ser mais uma vez reconduzido.

Ah, porque agora tenho que pagar a toxina botulínica da patroa. Sem falar que quero continuar bebendo o scotch 18 anos, a libar um autêntico bordeaux, engordar a conta bancária, upgradear o patrimônio, fazer minhas viagens e ajudar os amigos, porque, afinal de contas, vivemos numa sociedade pós-moderna, ou seja, solidária e fraterna, não é mesmo?

E quanto ao povo, não vai dizer nada?

Que polvo? Prefiro camarão ao alho e óleo.

Não me referi ao molusco. Falo do zé-povinho, nenhuma palavra pra ele? Isso não é um teste, estamos ao vivo, numa coletiva, o seu microfone está aberto.

Ah, claro (tentando disfarçar a surpresa, ao mesmo tempo em que ajeita o nó da gravata), como poderia esquecer o polvo, melhor dizendo, o povo...

Nesta altura, demonstrando visível desconforto, vira-se para trás (a câmara o acompanha) e localiza o assessor. E então, em linguagem labial, pergunta: o que é que eu digo?

O assessor, solícito, na mesma linguagem, dispara: diz aquela!

Qual?  Aquela que todos repetem?

Exatamente, aquela frase feita de todos conhecida. É imbatível.

Mas está tão desgastada. (Em verdade, ele queria dizer manjada).  Quero falar algo novo, original, impactante, republicano.

Não importa, ninguém vai lembrar mesmo. Nunca ouviu falar em memória curta? Vai soar como se fosse dita pela primeira vez. Bem contemporânea.

Recomposto, encarou a câmara mais próxima e, num tom pra lá de solene, disse:

Desconsiderem o que eu falei antes, pois, evidentemente, tudo não passou de uma brincadeira, pra relaxar. Podem ficar tranquilos. E isso não é promessa, é um compromisso registrado em cartório. Sei que ninguém aguenta mais ouvir falar em potencialidades. Por isso, agora é pra valer. Nossa hora chegou. Não medirei esforços. Vou lutar por mais investimentos pra nossa região e com isso gerar emprego e renda para a população mais carente.

Pano rápido.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

SEXO E ROCK AND ROLL



Airton Sampaio e M. de Moura Filho farão, amanhã, no Clube dos Diários, sessão de autógrafo de Dei pra mal dizer: contos eróticos, como parte do evento Namorados e Solteiros, da banda Radiofônicos.



domingo, 10 de junho de 2012

NATALÍCIO

Depois da luz hiperofuscante, depois que alguém de branco o segura pelas pernas e o balança, de cabeça para baixo, e lhe dá tapinhas nas costas, depois que quase se esgoela de tanto chorar, ele, não tem dúvida, ele vê.

— Quem é a Senhora?
Bem-vindo ao Inferno.
— Por Deus, quem é a Senhora?
Por Deus, como vocês indagam...
— Isso... Que é isso em sua mão?
Vou jogar, agora, para cima.
— ?
Se der cara, você perde.
— E se der coroa?
Você não ganha.

Ergue-se, num supetão. Já sentado, resfolega. Sua em bicas, o coração na boca, o corpo trêmulo. À frente, na parede branca, O Grito, de Munch, instantâneo preciso do que passara? Por Deus, nem os urros horripilantes que dei não a acordou!

— E olha, Nat, olha que meu sono é luva de pelica, você sabe...

A moeda furada... A mão descarnada da Velha... A moeda furada na mão descarnada da Velha... O resto, ah nem que forcejasse o resto não vinha, o resto deslembrava, o resto era branco, o resto era leitoso como a pele da mulher que, a seu lado, dormitava com os anjos, nua e linda, a bunda para cima, monumental.