domingo, 26 de agosto de 2012

... CANIVETE CORNETA À MÃO, GOLPE PRECISO

Por falar em malabarista, um de farol, no próximo sinal de trânsito. No lugar de bolas ou bastonetes, limões. Pego meu meio taco de sinuca, que trago escondido no casaco. Ando sempre de casaco. Por isso ninguém mexe comigo, pensam que se trata de um louco, pelo fato de usar casaco nesse calorão.  Eu sempre trabalho com três opções de golpes. Não vou acertar na cabeça, já decidi. Seria fácil demais. As pernas, dos joelhos para baixo serão o meu alvo.  Se optar pela parte superior das pernas, não vou bater com tanta força, quero apenas parti-las ao meio, mas sem separá-las, no máximo deixarei igual a dois mocotós unidos apenas pelo tecido subcutâneo, lado a lado, da mesma forma como ficam expostos no Box 14 do mercado do Mafuá depois do meio-dia, as moscas varejeiras circulando em volta.  Bem que eu poderia ser mais cruel. Se assim resolver, o objetivo será acertar os tendões do calcanhar de Aquiles com força suficiente apenas para rompê-los, sem abrir qualquer corte. Mas para isso, o golpe tem que ser perfeito. Combinar força com precisão. A ideia me surgiu a partir de uma história que me contaram do meu bisavô, esse sim um homem cruel, segundo soube, pois não o conheci em vida. Mantinha sua propriedade completamente cercada. Quando um animal, desses de pequeno porte como um cabrito ou um leitão invadia os limites de seus domínios, aproveitando uma brecha ou rompendo a cerca, ele mandava os agregados prender o bicho. Em seguida, pegava o velho canivete Corneta e, com um golpe preciso, cortava os tendões das patas traseiras do pobre animal. Maior precisão cirúrgica seria impossível, de tão perfeito o talho que se abria. Nesse tempo ainda não se falava em sociedade de proteção aos animais. O passo seguinte era jogá-lo por cima da cerca de arame farpado e contemplar a dolorida cena. Para deambular, o cabrito ou o capado ou o pequeno cordeiro, estropiado, tinha que apoiar todo o peso do corpo nas patas dianteiras. As traseiras, essas apenas se arrastavam com muito esforço. Tanta era a dor que, à medida que lentamente se arrastava, um rastro de mijo irrigava o chão estorricado. Era de dar pena, segundo dizem. Sei que é cruel demais, mas foi pensando nessa imagem que eu mudei os planos novamente, assim como abandonei a ideia inicial de arremessar para longe a cabeça do malabarista, e decidi acertá-lo com o taco nos tendões e com um desafio a mais: o serviço tinha que ser limpo, sem corte, sem sangue. Além do que, queria também satisfazer uma curiosidade. Saber se era tão bom malabarista a ponto de se manter em pé e continuar a executar o seu número até que o sinal verde abrisse.
 
Fiquei de tocaia. Quando o sinal vermelho acendeu e ele começou a jogar pra cima aqueles limões murchos, eu me aproximei rapidamente por trás e desferi dois golpes sequenciados, quase instantâneos, um para cada tendão. Nem deu tempo de o malabarista tentar se apoiar num deles e se defender. Foi ao chão e espatifou-se como um tomate podre. Os limões rolaram em direção à sarjeta. O trânsito foi interrompido. Na confusão, sai dali rapidamente. Um caprino tem mais fibra na têmpera do que um ser humano, conclui com uma serenidade de fazer inveja.
 

Um comentário:

CESAR CRUZ disse...

Faz tempo que eu não leio um conto forte assim, a la Rubem Fonseca e Ariosto Augusto de Oliveira. Parabéns, meu amigo magistrado! Saudades desse velho amigo.

Abço grande,
Cesar, de SP