terça-feira, 16 de dezembro de 2014

LÁPIDE

Não foi por dívidas. Sempre mantive as contas em dia, sem deixar de poupar algum. Pra viúva, deixo uma generosa pensão. Quanto aos filhos, sempre disse que pai é pai, mãe é mãe e filho é ingrato, mesmo assim, serão destinatários de uma bela quantia em imóveis e aplicações financeiras. Disso, não haverão de se queixar.

Não foi por doença. Sempre frequentei regularmente os médicos, inclusive o urologista, que minha próstata não me deixa mentir. O último ultrassom revelou dimensões levemente aumentadas, mas com contornos regulares e textura parenquimatosa preservada, tudo a demonstrar um resultado compatível com hiperplasia benigna.

Não foi por falta de amor. Sempre fui muito amado. Tanto e por tantas que muitas vezes tive a firme convicção de que não era merecedor. Receio que não tenha devolvido com a mesma intensidade.

Levo comigo uma antiga frustração. A de não ter tido habilidade suficiente para construir grandes amizades, apesar dos esforços. Como no poema, tive poucos, raros amigos. Algumas delas não resistiram ao tempo. Outras sucumbiram diante de circunstâncias que a mim pareceram desprezíveis, sinal de que não eram tão sólidas assim, tanto que se desfizeram em grãos de areia.

Não desperdicem tempo com quebra-cabeças. Não há um motivo aparente. Nem chorem por mim, que detesto pantomimas.
Ao contrário de Borges, nunca soube qual seria meu destino, o que não significa dizer que nunca o persegui.
Antes, precisava encontrar a mim mesmo. Pressuposto essencial.
Foi onde falhei.
Aconteceu que me cansei.
Simples assim.



segunda-feira, 18 de agosto de 2014

TEMPO É O NOME DO SER

Era outono. A cidade acordou preguiçosa e com os olhos embaçados de quem se recusa a despertar. Pela janela observou a rua vazia e por alguns instantes a sensação do tempo parado despertou-lhe, além de curiosidade, a ideia de tirar algum proveito da situação. Nem cães vadios nem gatos enxotados se atreviam a sair dos esconderijos para remexer o lixo revirado sobre as calçadas, rescaldo da pantomima da noite anterior. Não fosse pela grossa fumaça que saía dos escapamentos os raros veículos que se lançavam passariam despercebidos, de tão silencioso o ronco dos motores. Imaginou que, congeladas até a alma, as pessoas, encurvadas, com os braços cruzados, e aprisionadas pelo medo de que os segredos pudessem ser revelados, recusavam a se mover e repetiam o mantra que lhes alimentava a esperança de um raio de luz que abrisse o azul no horizonte cinzento. Chovia uma chuva fina que, sem animar, não deprimia. Igual a que não consegue remover os entulhos deixados para trás e nem escorrer em busca de um leito para desaguar, mas que, imperceptivelmente, penetra o seio profundo da terra, irriga o ser encoberto e o desvela para a alegria da alma esquecida quando lhe remove os sucos, tal qual se revolve o chão batido da memória, tornando-a fofa, revirada e pronta para ser lavrada. Naquele momento quis uma chuva implacável e inoponível, que o arrastasse dali, livrando-o de todos os seus ais, desligando passado e futuro. Quis sim, como Kronos, negar o tempo, pô-lo a ferros. Sem memória e sem porvir. Regozijou-se com a ideia de que aprisionara para sempre o interlúdio instantâneo entre o que foi e o que virá. Desejou tanto eternizá-lo que sonhou com manhãs chuvosas nas quais era aquecido com um abraço forte, um beijo tórrido. Mas quando, a cada despertar, viu que eram iguais, as tardes cinzentas e o presente estéril, chorou copiosamente.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Angústia heideggeriana

é (o) ser jogado no mundo
sozinho
no abismo entre o que ainda não é [mas que será]
e o que não é mais [porque já passou]
é nele [gargalho estreito, instante fugidio] que, bem ou mal, nos movemos

e nos equilibramos

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

AGUILHÃO RIMBAUDIANO

Sonhava que era um temível caçador de tigres quando o telefone tocou. Era ela dizendo que acordara daquele jeito: apaixonada, mas logo que surgissem os primeiros fios de sol voltaria a odiá-lo. Antes de dizer palavra, a ligação foi bruscamente interrompida. Enquanto escovava os dentes e conferia o tom cinza que avançava rapidamente, refletiu e chegou à conclusão de que o mundo se divide entre dois tipos de mulheres: as que odeiam à noite e as que amanhecem mais apaixonadas do que nunca. Ou seria o contrário?
Com o ar de enfado, afastou os pensamentos vãos e desabafou: melhor e mais simples seria que a escolha pudesse ser feita entre as que usam máquina zero ou cultivam uma mata atlântica. Ou entre as que oscilam entre as montanhas gerais e um bolero de Ravel no final de uma tarde na praia, ali onde estamos mais perto de nossos ancestrais. Eu sou um pouco de cada uma e todas que existem dentro de mim te amam, mas isso só aumenta o ódio que sinto por isso, diria ela.
Constatou então que o mundo também se divide em dois tipos de homens: o primeiro é formado por aqueles que se internam num hospício, no segundo estão os que entram para um mosteiro de uma ordem religiosa qualquer e, por acaso, descobrem a fórmula do queijo gorgonzola.
Contudo, resolveu que não seria vítima dos mesmos dualismos metafísicos. Haveria de ter um terceiro tipo. Lembrou-se do sonho e foi picado pelo aguilhão rimbaudiano. Tomou uma decisão. Iria desfazer-se de tudo e partiria numa viagem sem volta, que duraria mil e uma noites, até o sul da África onde, jogado no meio das savanas e armado até os dentes, viveria borgianamente a sonhar com tigres, punhais e labirintos.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Ai, se eu te pego, João!

- ...
- Vou te encher de beijos!
- ...
- E serão tantos que depois tu vai me puxar pelo cabelo, vai me rasgar a roupa,  me arrastar até a cama...
- ...
- Aí então, tu vai botar a mão na minha coxa, vai demarcar o território, vai abrir sulcos profundos sobre a pele da minha bunda, vai me mandar lamber teu suor, vai mostrar porque é meu dono, me chamar de vadia!

domingo, 5 de janeiro de 2014

INAÇÃO, conto-recorte de Airton Sampaio


para Assis Brasil


Ao gritar o nome da cigana, Inação viu um homem, de pele queimada, aparecer na pedra onde Sulima costumava ficar despida. Ele estava sem camisa e tinha uma faca na cintura. Inação logo reconheceu: “é um cigano”. Ouviu o mato estalar nas suas costas e sentiu que estava cercado: “aquela desgraçada”. E tudo ficou em silêncio - o cigano lá, na pedra, feito uma estátua. Inação levou a mão à peixeira e ficou à espreita. O cigano desceu do lugar onde estava e quando surgiu na sua frente já trazia a faca na mão. É
o meu branco da casa da fazenda?
- Ele mesmo.
- O branco vai morrer, ouviu?
- É?  E quem vai matar?
- Esse aqui, na sua frente. .

E saltou sobre Inação que, rápido, mostrou a peixeira no seu rumo O cigano se desviou ligeiro como um gato e, no desvio, conseguiu ainda tocar,  embora de leve, numa das orelhas de Inação, que começou a sangrar. O cigano parecia flutuar no ar, leve como uma folha seca – dançava na sua frente, esbelto – e Inação pela primeira vez viu a cara do homem, que tinha a sua mesma altura - os olhos escuros traziam ódio, a boca estava fechada com rancor. Foi 
o branco quem abusou de Sulima?
- Todos vocês são uns cachorro.

Encararam-se como duas onças. Agora mediam melhor o espaço entre os dois - Inação fitava o cigano, para melhor acompanhar seus movimentos, e pensava, “é matar ou morrer,  não tem jeito”.  E então se lembrou que há dez anos teria enfrentado aquele cigano sem um trisco de medo, como naquela briga no terreiro defronte à casa da fazenda, para castigar um valentão que tinha desfeiteado dona Candinha.  O golpe mortal que dera no Doca Barroso fora considerado por Matias como um golpe de mestre. Era um golpe traiçoeiro, mas o homem tinha que ser ligeiro  como uma criança para conseguir seu intento.

Inação fitou a cara do cigano e viu foi a cara do Doca Barroso. Aí deu uma volta no ar, dez anos mais remoçado, mudou a peixeira da mão direita para a esquerda, balançou o corpo três vezes, deu um berro que podia espantar até os espíritos da mata e atingiu o cigano bem no pé do umbigo, enfiando a peixeira até o cabo – com a outra mão amparou o golpe da faca adversária, que ainda lhe riscou os dedos, “toma, desgraçado.” O cigano caiu a seus pés, já de olho vidrado. Inação tirou, com calma, a peixeira do corpo, limpou o sangue numa folha de bananeira e começou a sentir as pernas trêmulas. Teve ímpeto de sair correndo dali quando ouviu um galho quebrado na mata -  respirou fundo, o suor lhe empapava o rosto e o pescoço e sentia todo o corpo em febre. Esperou em posição de defesa. Tudo podia acontecer naquela noite, os ciganos tinham marcado a sua morte, já sabia.

O olho d’água continuava tranquilo, como se nada estivesse acontecendo. De vez em quando Inação ouvia um pequeno estalo na mata - eram eles dizendo que estavam ali. Mas não apareciam, como se esperassem que Inação tomasse sentido daqueles instantes e compreendesse que estava perdido.

Outro homem, de argola dourada na orelha direita – desta vez mais velho - surgiu na frente de Inácio. Trazia uma peixeira na mão cabeluda - a pele tostada, as sobrancelhas grossas. Inácio notou que ele mascava um pedaço de fumo, não lhe pôde ver os olhos  - a lua grande havia sumido. Pensou aplicar o mesmo golpe dado no outro cigano - agachou-se na frente do homem (este era mais sereno do que o outro) - a mão segurava com firmeza o cabo da peixeira – Inácio achou o cigano mais baixo do que o anterior - rodavam em torno de um círculo imaginário, como dois touros enfurecidos antes de entrechocarem os chifres. O cigano se aproximou mais de Inação e experimentou sua destreza com um golpe de baixo para cima, com intenção de botar suas tripas pra fora. Inação deixou que o cigano tomasse duas ou três iniciativas na luta - as duas peixeiras se encontravam e lançavam faíscas no ar parado da noite - nesses instantes os dois se mediam pela astúcia e pela força. Inação viu, após os primeiros golpes, que estava diante de homem mais experimentado - ele devia ter visto o golpe que dera no seu companheiro e não cairia no laço. E teve um repente: jogou a peixeira na cara do cigano, ele tonteou, o sangue descendo do nariz -  e o lnação torceu-lhe o braço até a sua arma cair no chão.

Estão desarmados agora, corpo contra corpo, bafo contra bafo, o suor dos dois se mistura - Inação sabe que não pode manter  a luta daquele jeito, sente um esmorecimento e se separa do cigano – os dois apanham de um salto a arma. Inação resolve aplicar o golpe que chama de traiçoeiro, pois ninguém até aquela data tinha se livrado dele - uma volta no ar, a peixeira de mão a mão, o corpo balançando na frente do inimigo, o berro de animal ferido e a facada certeira na barriga - o cigano se amparou em Inação, ofegante, os olhos arregalados, como a dizer “este homem é um demônio” – Inação retirou a faca ensanguentada e deixou o corpo cair numa poça do olho d’água.

A luta é desigual - pensa Inação – e só há um meio de escapar: fugir, correr em qualquer direção. Sente um principio de pânico, as forcas esmorecem, sabe que não poderá mais com o próximo cigano – eles não querem um massacre, querem uma luta de homem para homem, “vão fazer assim até me acabar". Por onde andaria Matias? Na certa namorando em algum sovaco da estrada de ferro. Era um festeiro, aquele compadre, mas na hora da precisão não  aparecia. E o pessoal da vizinhança, por que não surgia vivalma? E o padre, que sempre andava de madrugada, conversando com as estrelas? Pela primeira vez numa briga sentia precisão de ajuda. Inação respirava fundo e esperava, bem próximo aos corpos dos ciganos. O suor que sentia escorrer pelo peito já era frio - ou a noite esfriava com a lua escondida? "Os ciganos deixam que eu descanse, querem uma luta limpa, sem injustiça, os desgraçados". Inação tem as pernas trêmulas, a vista embaçada, aspira todo o ar que pode, estira os braços como para reunir as forças,  “eles querem me acabar". Outro cigano surgiu de repente na frente de Inação, como se tivesse saído do fundo do olho d’água. Para Inação aquilo já era mais pesadelo que realidade. O cigano, de peixeira em punho, não era um homem de carne e osso, já era um fantasma. Teve vontade de gritar e gritou: “Desgraçado”. O eco respondeu no fundo da mata: “Desgraçado”. O 
branco sabe que vai morrer agora?
- Traz toda a tua gente que eu mato tudo e dou pros urubus.

O cigano mostrou a peixeira reluzente e fez menção de atirá-la nele. Inação se agachou, o cigano pulou em cima dele e, com um pontapé,  o desarmou. Inação, agora desarmado, não pensa mais em correr, o ódio tomou conta dele - ouve a voz de Sulima, a sua gargalhada mato a dentro, sente o perfume de seu corpo, “desgraçada”, e grita, “desgraçado”. Sente um novo ânimo, o suor está quente no rosto, a vista mais clara - a lua grande saía das nuvens para ele ver melhor o homem à sua frente.

O cigano não deixa que recupere a peixeira - joga-a no olho d'água. Inação tem ímpeto de se atracar com o cigano, mas respeita a faca reluzente em seu peito, quando o  cigano, num movimento rápido, corta-lhe bem fundo os dois braços, um de cada vez. Ele sangra, mas não sente dor. O cigano mostra-lhe os dentes, vai picá-lo aos poucos, como Inação pretendia fazer com um deles, “depois dou pros urubus", então corta de leve o peito direito de Inação, que se defende com as mãos vazias, também riscadas pela peixeira afiada. O cigano só espera que Inação, na sua fúria, avance, para receber sucessivos cortes na pele - ele sangra, a roupa já está toda ensopada.  Ao gritar mais uma vez “desgraçado” Inação sente que as forças sumiam de vez e não estava longe o seu fim. O filhinho morto, a Zita, a Frecheira da Lama são apenas um sonho... O cigano deixa que Inação o abrace, numa última investida, e crava-lhe, com ira, a peixeira no peito. Eles beneficiaram o Inação, doutor.
- O quê, Matias?
 - Sim, senhor, caparam o Inação.